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Passeio Socratico

Passeio Socratico

Você sabe o que é um passeio socrático?


De Frei Betto, do livro 'O desafio ético' (Editora Garamond), obra
assinada também por Luís Fernando Veríssimo e três outros importantes
intelectuais brasileiros.


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da
Mongólia, do Japão e da China.. Eram homens serenos, comedidos,
recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala
de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados,
ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já
haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea
oferecia um outro café, todos comiam vorazmente.
Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos produz felicidade?"

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
- Não foi à aula? Ela respondeu:
- Não, tenho aula à tarde. Comemorei:
- Que bom! Então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde.
- Não, retrucou ela, tenho tanta coisa de manhã...
- Que tanta coisa?, perguntei.
- Aulas de inglês, de balé, de pintura, natação, e começou a elencar
seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a
Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'
Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente
equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas
consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência
Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se
relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos
escolares incluírem aulas de meditação!


Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960,
seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta
academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar
o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do
espírito.
Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos:
- Como estava o defunto?
- Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!
Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da
ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na
realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade.
Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se
pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse.
Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga
íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de
prédio ou de quadra! Entramos na virtualidade de todos os valores, não
há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da
linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos
virtuais, cidadãos virtuais.
Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também
eticamente virtuais... Cultura é o refinamento do espírito.
Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um
problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um
pouco menos cultos.
A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional
da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá
e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de
que felicidade é o res ultado da soma de prazeres: 'Se tomar este
refrigerante, vestir este tênis,­ usar esta camisa, comprar este
carro, você chega lá!'
O problema é que, em geral, não se chega!
Quem se deixa iludir desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba
precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, se sente
louco porque não faz parte da neurose coletiva. Os psicanalistas - que
também desejam 'ter' e não se satisfazem com o que são, o que amam, o
que fazem - tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus
pacientes.
Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma
sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. O
grande desafio é gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser
livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal,
consumista. Assim, pode-se viver melhor.
Aliás, para uma boa saúde mental, três requisitos são
indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno.. Se alguém vai à
Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar
saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem
história.
Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma
catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso:
a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais
estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso
vestir roupa de missa de domingos.
E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há
mendigos,crianças de rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles
claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de
esperar dentista.
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os
veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem
pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus, como os que outrora
foram convencidos a comprar a própria absolvição. Se deve passar
cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial,
sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se
sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia
pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo
hambúrguer do McDonald's.. .
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
- Estou apenas fazendo um passeio socrático..
Diante de seus olhares espantados, explico:
- Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça
percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês
o assediavam, ele respondia: 'Estou apenas observando quanta coisa
existe de que não preciso para ser feliz.'